sábado, 4 de outubro de 2014

Garota Exemplar

Garota Exemplar é um thriller com um roteiro absolutamente genial, que conta com personagens inteligentes e que precisa de um diretor competente para orquestrar tudo o que acontece na história sem que esta vire uma grande bagunça. E o filme encontra esse diretor em David Fincher, que aqui se dedica exatamente ao tipo de projeto que dá gosto de vê-lo fazendo. Dessa forma, temos como resultado uma obra fascinante em todo o suspense que percorre seus 145 minutos de duração.

Baseado no aclamado livro de Gillian Flynn, o roteiro escrito com precisão cirúrgica pela própria autora se concentra no desaparecimento de Amy Dunne (Rosamund Pike), que ganha grande atenção por parte da mídia e causa um alvoroço na pequena cidade de North Carthage, no Missouri. O principal suspeito do caso é o marido dela, Nick Dunne (Ben Affleck), que age de maneira estranhamente tranquila para alguém que pode ter acabado de perder a esposa. A partir disso, passamos a acompanhar os esforços de Nick e da polícia para descobrir o que aconteceu, e ao mesmo tempo vemos como era o relacionamento do casal.

“Eu me imagino abrindo seu crânio, desenrolando seu cérebro e vasculhando-o, tentando capturar e fixar com alfinete seus pensamentos”. Logo de cara vemos Nick falar isso sobre sua esposa em uma narração em off. Obviamente é algo macabro de se dizer e trata de estabelecer que o que veremos não é um relacionamento particularmente tranquilo, tornando compreensível como Nick pode ser suspeito. No entanto, há uma troca de diálogos entre a policial responsável pelo caso, Rhonda Boney (Kim Dickens), e seu parceiro Jim Gilpin (Patrick Fugit) que sintetiza bem a história em si. Enquanto ele fala que “As respostas mais simples geralmente são as corretas”, ela diz “Nunca acreditei que isso fosse verdade”. E realmente, ainda que o caminho mais fácil seja dar Nick como culpado, à medida que avançamos no filme descobrimos que a escala do que está acontecendo é muito maior do que imaginamos.

Nisso, a estrutura do roteiro de Gillian Flynn é interessante ao fazer um verdadeiro quebra-cabeça, trazendo inicialmente a investigação em seu centro e intercalando essa parte com flashbacks impulsionados pelo diário mantido por Amy, que mostram a visão dela quanto aos principais momentos de sua vida com Nick e de como a relação deles vinha se deteriorando. Mas se até aí vemos um thriller sobre um desaparecimento, as reviravoltas que Flynn constrói ao longo da narrativa subvertem a expectativa do público, dando rumos surpreendentes e imprevisíveis ao filme, de forma que mais tarde vemos praticamente um jogo de gato e rato manipulador e intrigante, disputado quase que exclusivamente na mídia.

E já que mencionei esse elemento importante da trama, vale dizer que é impossível não admirar o comentário interessantíssimo que o filme faz sobre como a imprensa, infelizmente, se importa não só com explorar tudo o que puderem de uma história para conquistar a audiência, mas também com apontar possíveis culpados, não ligando se as provas para isso não são suficientes ou se vidas serão destruídas no processo. Sendo assim, é curioso ver que só o fato de Nick sorrir na hora mais inapropriada já é o suficiente para fazer com que uma apresentadora de TV veja sinais de sociopatia. E é exatamente a força da imprensa que dita grande parte dos atos dos personagens.

Tudo isso é conduzido com maestria por David Fincher, sendo que o diretor desde o início demonstra ter controle sobre a história que está contando, aproveitando ao máximo o roteiro de Flynn para criar uma narrativa envolvente e constantemente tensa. Para isso, Fincher tem a ajuda da belíssima fotografia de Jeff Cronenweth, que aposta bastante nas sombras para criar uma atmosfera inquietante, detalhe que encontra reflexo no próprio estado dos personagens. Enquanto isso, a montagem de Kirk Baxter se revela digna de prêmios ao lidar brilhantemente com a complexa estrutura do roteiro, investindo ainda em um ritmo mais ágil para a trama, fazendo isso sem sacrificar a calma com a qual ela é desenvolvida.

Já o elenco interpreta com propriedade as figuras inteligentes criadas por Gillian Flynn. Ben Affleck encarna Nick com uma segurança invejável, sendo possível se identificar com o personagem por mais falho que ele seja como pessoa, ao passo que Rosamund Pike brilha em todos os frames em que aparece com sua atuação multifacetada como Amy (tanto ela quanto Affleck merecem ser lembrados nessa temporada de premiações). E se Tyler Perry surpreende ao trazer carisma e bom humor ao advogado Tanner Bolt, Neil Patrick Harris, Carrie Coon e Kim Dickens deixam fortes impressões como Desi Collings, Margo Dunne (irmã gêmea de Nick), e Rondha Boney.

Com tantas qualidades, é impossível não se empolgar com Garota Exemplar, que se estabelece desde já como um dos trabalhos mais impressionantes de um dos melhores diretores de sua geração, além de ser também um dos melhores filmes deste frutífero ano de 2014.

Nota:


Nenhum comentário: