sábado, 17 de janeiro de 2015

Livre

Em determinada cena de Livre, poucas horas depois da protagonista Cheryl Strayed iniciar sua longa caminhada pelo Pacific Crest Trail, ela olha para trás e contempla o quanto percorreu até então, ainda pensando se não deveria desistir. No entanto, é evidente que ela não está olhando apenas para um simples trajeto, mas para uma existência repleta de maus momentos que a colocaram ali. E desistir daquilo que começou seria o mesmo que voltar para esse passado sombrio. Em parte, é isso que torna Livre um estudo de personagem tão interessante, representando mais um trabalho admirável do diretor Jean-Marc Vallée (do ótimo Clube de Compras Dallas), além de contar com uma das melhores atuações da carreira de Reese Witherspoon.

Escrito pelo talentoso Nick Hornby a partir do livro autobiográfico de Strayed, Livre nos apresenta a ela já em 1995, quando está lidando com todas as dores e dificuldades naturais do percurso do PCT. É então que passamos a acompanhar intercaladamente o que a levou a encarar tal desafio, desde a relação que tinha com a mãe, Bobbi (Laura Dern), e com o marido, Paul (Thomas Sadoski), até sua vida autodestrutiva, repleta de irresponsabilidades. Completar o trajeto do PCT, nesse caso, é o que daria à Cheryl a confiança e a segurança que ela tanto precisa para seguir adiante em uma vida nova.

Ao se estruturar de forma que possamos seguir a protagonista ao longo da trilha e ver como ela era antes disso, Livre traz uma série de flashbacks que desenvolvem a personagem de maneira bastante aprofundada, e que no processo conseguem fazer com que compreendamos rapidamente seus atos. Nesse quesito, é impossível não destacar a excelente montagem de Martin Pensa e do próprio Jean-Marc Vallée. Incluindo pequenas motivações para os flashbacks (uma música começa a tocar, por exemplo), a dupla os estabelece na maior parte do tempo como lembranças de Cheryl, o que não só concede naturalidade à narrativa como também ajuda a história a nunca perder seu ritmo e ganhar uma força ainda maior. É uma surpresa que o filme não tenha sido reconhecido nos mais variados prêmios nesse aspecto.

Conduzindo tudo com grande segurança, Vallée trata os passos de Cheryl de um jeito que eles ficam exaustivos tanto para ela quanto para o público, de forma que quando vemos na tela que chegamos ao “Maldito dia 36” da caminhada é possível sentir seu cansaço. O diretor também mostra sensibilidade no modo como aborda a protagonista e os obstáculos que ela encontra em meio ao PCT, sendo que estes chamam atenção por claramente serem uma representação de todas as dificuldades que a personagem teve no passado. Quando Cheryl perde uma bota e grita para pôr sua raiva para fora, ela não está fazendo isso apenas por causa da bota, mas também por todos os erros que cometeu e problemas que enfrentou, algo que traz um ótimo peso emocional ao longa.

Se Livre já é interessante por tudo isso, a atuação de Reese Witherspoon é a cereja do bolo. Tendo passado alguns anos em baixa ao se dedicar a projetos não muito bons, a atriz vinha há algum tempo ensaiando um retorno, e aqui ela completa isso brilhantemente. Aparecendo em 99% das cenas do filme, Witherspoon carrega a narrativa com propriedade, fazendo de Cheryl uma personagem inicialmente vulnerável, mas que aos poucos fica mais segura quanto ao que está realizando, encarnando ainda muito bem toda a parte do sofrimento físico causado pelo PCT. Com relação a esses detalhes, não é à toa que várias pessoas passam a admirar Cheryl por seus esforços, até porque são raras as mulheres no percurso. Mas não é só Witherspoon quem brilha, já que Laura Dern surge com uma doçura encantadora interpretando Bobbi, tornando-a uma mulher que consegue apreciar o que tem ao seu redor exatamente por ter conseguido driblar, de um jeito ou de outro, as pedras que foram colocadas em seu caminho, o que acaba ecoando bastante em sua filha.

Livre talvez seja um tanto simplista no desfecho de sua história. Mas isso não chega a tirar os méritos do filme de ser uma bela jornada de autodescoberta, que nos faz pensar se uma eventual perdição não terá valido a pena caso nos ajude a achar o caminho certo para nossas vidas.

Nota:


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