sábado, 3 de setembro de 2016

Aquarius

Logo no início de Aquarius, novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho (do excepcional O Som ao Redor), uma personagem olha para uma cômoda e relembra um momento de sua vida no qual o objeto se mostrou bastante útil, mesmo que em uma função de importância relativamente mínima. Porque é isso que ocorre com quaisquer objetos materiais que adquirimos ao longo dos anos: são marcados por nossos passos, criando uma série de memórias que guardamos inevitavelmente. Isso é algo de grande importância para o filme, sendo usado como ponto de partida para que seu diretor desenvolva uma narrativa fascinante envolvendo um choque de interesses que rende ótimas discussões, além de trazer em seu centro uma protagonista absolutamente brilhante.

Escrito pelo próprio Kleber Mendonça Filho, Aquarius nos apresenta a Clara (Sônia Braga), uma aposentada crítica musical que mora no Recife, em um apartamento no edifício que dá título ao filme. Ela é a última residente do prédio, já que os outros moradores venderam seus apartamentos para uma construtora, que pretende demolir o lugar para poder construir um edifício mais moderno, um projeto liderado pelo jovem Diego (Humberto Carrão). Ainda que o número de zeros do valor oferecido por seu lar seja bastante atraente, Clara mantem-se firme em sua decisão de não abrir mão dele, não deixando Diego e seus colegas muito satisfeitos, o que os faz pensar em maneiras grosseiras para fazê-la mudar de ideia.

Com o apartamento sendo o lugar onde Clara fez sua vida, criou seus filhos, viveu suas alegrias e suas tristezas, a importância dele para ela fica evidente desde o princípio. Porém, não demora muito para que ele se estabeleça também como a representação dos ideais da personagem com relação ao que é justo, algo que é até maior do que ela própria. Assim, do ponto de vista puramente humano, o roteiro de Kleber Mendonça Filho aborda o embate com a construtora de maneira poderosa, com Clara defendendo a todo custo suas memórias e o direito que tem de ficar em sua casa, ao passo que Diego e seus colegas estão mais preocupados em terem seus interesses atendidos, não se importando se isso ocorrer de maneira errada e achando que dinheiro é o suficiente para convencer qualquer pessoa, não entendendo que algumas coisas simplesmente não podem ser compradas. E é bacana ver que o roteiro tem noção que essa pequena briga envolve mais do que apenas os dois lados em que se concentra, lembrando também daqueles que já venderam os apartamentos e mostrando que, quando alguém se sente prejudicado, até um ato correto pode ser visto como equivocado e egoísta dependendo da visão da pessoa, o que só ajuda a tornar as discussões mais complexas e instigantes.

Mas se acompanhar o desenrolar dessa história já rende uma experiência rica, as coisas ficam ainda melhores por termos em Kleber Mendonça Filho um diretor cada vez mais interessante. Além de ditar um ritmo que envolve o espectador do início ao fim, o realizador exibe uma sensibilidade por vezes até tocante na forma como trata a história de sua protagonista, sem falar que ele consegue divertir com os personagens quando deseja (a cena em que Clara vai a uma festa com as amigas) e criar tensão quando precisa (a sequência em que ela abre outros apartamentos), mostrando uma versatilidade admirável na condução da narrativa.

Mas vale dizer que Clara é responsável por grande parte da razão de ser de Aquarius. Mulher forte, independente e ativa (inclusive sexualmente), a personagem não permite que seja passada para trás pela idade ou pela constante modernização sofrida pelo mundo, sendo que ainda podemos ver desde o início como ela é amada, admirada e respeitada pelas pessoas ao seu redor, o que só prova sua força de caráter e sua humanidade. Trata-se de uma personagem que não poderia ser mais multidimensional, tendo na grande Sônia Braga uma intérprete de peso e que carrega a narrativa com segurança absoluta, em uma daquelas atuações que, de tão boas, imortalizam carreiras. Enquanto isso, o elenco de apoio também é excelente interpretando figuras que ajudam a enriquecer a narrativa sempre que aparecem, desde Humberto Carrão como Diego até Irandhir Santos como o salva-vidas Roberval e Maeve Jinkings no papel de Ana Paula, filha de Clara, que protagoniza com a mãe uma cena lindíssima quando elas discutem a proposta pelo apartamento.

Aquarius acaba sendo sobre muito mais do que a história de uma mulher fascinante e a preservação de algo importante para ela. É também sobre resistir a injustiças, principalmente quando quem a comete passa a jogar sujo, e saber contra-atacar. Em suma, por coincidência ou não, Kleber Mendonça Filho e sua equipe fizeram um longa que dialoga muito com o momento atual de seu país (“Todo bom filme é um documento de sua época”, dizia o cineasta francês Eric Rohmer) e que revela ser um exemplar magnífico do nosso cinema, se colocando desde já entre os melhores filmes do ano.

Nota:

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