quinta-feira, 30 de março de 2017

A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell

Adaptação do mangá de Masamune Shirow, O Fantasma do Futuro organizava uma narrativa complexa que encantava com suas discussões envolvendo tecnologia e natureza humana, ao mesmo tempo em que desenvolvia uma trama policial e política envolvente com seus personagens. Trata-se de um filme rico em vários aspectos, trazendo um conteúdo que dialoga muito bem com obras como Blade Runner e RoboCop (o primeiro certamente foi uma de suas principais inspirações). É um material que não deixa de ter um bom potencial para render outras produções interessantes, algo que este remake, A Vigilante do Amanhã, parece compreender. Mas os esforços deste novo longa em repetir o sucesso de seu original não chegam a render uma obra tão boa quanto poderia.

Situado em um futuro próximo, A Vigilante do Amanhã segue Major (Scarlett Johansson), que após um acidente torna-se a primeira pessoa a ser transferida para um corpo cibernético, em um experimento realizado pela Dra. Ouélet (uma Juliette Binoche pouco aproveitada), ganhando habilidades sobre-humanas. Trabalhando com a força-tarefa conhecida como Seção 9, liderada por Daisuke Aramaki (Takeshi Kitano), Major se concentra em perseguir e prender terroristas. Com a ajuda de seu parceiro Batou (Pilou Asbæk), ela passa a investigar um criminoso (Michael Pitt) capaz de hackear as mentes das pessoas através da rede que as mantém interconectadas, sendo que ela ainda encara segredos sobre seu passado que a fazem questionar sua própria natureza.

Inicialmente, a impressão que o filme passa é a de que seguirá mais ou menos à risca aquilo que foi feito na animação original, como se vê nos créditos iniciais que surgem enquanto o corpo de Major é construído ou na sequência em que a protagonista salta de um prédio e se camufla para atacar seus alvos. Logo, porém, o roteiro (escrito por Jamie Moss e William Wheeler em parceria com Ehren Krueger) sai dessa linha, fazendo modificações e tentando seguir seu próprio caminho enquanto busca manter a essência de seu material. Nisso, até vemos pontualmente certas discussões envolvendo a relação da humanidade com a tecnologia avançada, com foco principalmente em questões existenciais quanto ao que nos torna humanos e se isso não seria afetado de alguma forma por aprimoramentos robóticos. E quando alguém diz que Major é o que todos serão um dia, é notável ver a atenção que o diretor Rupert Sanders (o mesmo do fraco Branca de Neve e o Caçador) dá para a solidão da personagem, dando um tom melancólico para o sentimento de deslocamento dela e para a possibilidade disso se espalhar pela sociedade.


No entanto, apesar de o filme apresentar um universo rico (por mais que sua concepção grite “Blade Runner” várias vezes, seja no visual com grandes outdoors holográficos ou no uso de memórias implantadas), essas ideias trazidas por ele não ganham muito aprofundamento, sendo também uma pena que tudo seja embalado por uma narrativa sem energia durante a maior parte do tempo, o que dificulta seus esforços para envolver o espectador. É algo que atinge não só o desenvolvimento da trama, mas também as próprias sequências de ação, quesito no qual Rupert Sanders parece mais preocupado em criar grandes momentos em câmera lenta do que em conceber cenas empolgantes com sua protagonista e as habilidades dela, que no fim são utilizadas de maneira burocrática, pouco imaginativa. Aliás, falando em Major, vale dizer que Scarlett Johansson volta a criar uma heroína de ação forte, trabalhando bem a humanidade da personagem e suas dúvidas quanto ao que realmente é (o pequeno susto que ela leva ao ser abraçada em determinado momento é um toque curioso nesse sentido), ainda que o papel se encaixasse melhor em uma atriz asiática.

Mesmo trazendo elementos interessantes em seu cerne, A Vigilante do Amanhã é um remake que não chega a realmente justificar sua existência, deixando ao final da projeção o sentimento de que pouco acrescentou ao que foi feito pelo anime original há cerca de 20 anos.


Nota:

domingo, 26 de março de 2017

Power Rangers

Ao longo de Power Rangers, novo longa baseado na famosa série de TV da década de 1990, me vi um tanto que dividido. De um lado estava o profissional crítico de cinema que assistia ao filme e, ao analisá-lo, não conseguia fechar os olhos para seus problemas. Do outro, estava a criança que cresceu acompanhando aquele universo efusivamente e sentia prazer em revê-lo. De certa forma, ambos saíram do cinema em conflito enquanto debatiam suas impressões com relação àquilo que viram na telona.

Mas para que este texto possa ser justo com a obra, acredito que as palavras a seguir terão que vir do crítico.

Escrito por John Gatins a partir do argumento concebido por Matt Sazama e Burk Sharpless em parceria com o casal Michele Mulroney e Kieran Mulroney, este novo Power Rangers segue o grupo formado por Jason (Dacre Montgomery), Kimberly (Naomi Scott), Zack (Ludi Lin), Trini (Becky G.) e Billy (RJ Cyler), jovens que encontram cinco pedras depois que este último resolve explodir parte de uma mina. Mas além de darem poderes a eles, as pedras ainda os colocam diante de Alpha 5 (voz de Bill Hader) e seu líder Zordon (Bryan Cranston), que passam a treiná-los para que eles sejam os grandes protetores da Terra, conhecidos como Power Rangers. Isso se revela mais do que necessário depois que a maléfica Rita Repulsa (Elizabeth Banks) desperta e dá início ao seu plano de destruir o planeta.

Trata-se basicamente da mesma história que iniciou a série há quase 25 anos, com a diferença de que rapidamente podemos ver que o diretor Dean Israelite (o mesmo de Projeto Almanaque, que não vi) busca criar uma narrativa com um tom mais sério, se afastando da abordagem mais espalhafatosa e infantil que a série tinha. Isso vem até como um reflexo do próprio roteiro, que se esforça para desenvolver dramas pessoais para os heróis, de forma a torna-los humanos e interessantes, exibindo no processo inspirações claras em Clube dos Cinco. Mas o filme não se sai tão bem nessa tarefa quanto poderia, tratando esses conflitos superficialmente e mostrando, em alguns casos, que não está muito interessado em resolvê-los. Para completar, o roteiro abusa dos diálogos expositivos para estabelecer a premissa e os personagens, algo que fica óbvio na cena em que os Rangers se reúnem envolta de uma fogueira ou no primeiro encontro deles com Zordon, além de a trama ser desenvolvida de maneira forçada, seja por Rita convenientemente ser encontrada assim que os heróis descobrem as pedras ou por estes, em questão de poucos dias, irem de completos desconhecidos a amigos que dariam a vida uns pelos outros, o que não soa muito autêntico.


Enquanto isso, as cenas de ação são dirigidas por Dean Israelite de maneira pouco imaginativa e sem graça, com o realizador não conseguindo injetar energia nos confrontos, que na maior parte do tempo consistem em colocar os Rangers lutando com pilhas de pedras (é assim que podemos definir o design dos monstrinhos de Rita). E se inicialmente o diretor busca uma abordagem mais densa que a da série de TV, isso é jogado para o espaço no terceiro ato, que não só inclui uma batalha que destrói parte de uma cidade sem se importar muito com os civis (detalhe típico do material original) como ainda conta com uma cena envolvendo câmeras de celular que parece não notar o quão ridícula realmente é.

Já o jovem elenco de Rangers faz o que pode com seus personagens, exibindo algum carisma e tendo uma dinâmica até interessante, por mais que a amizade entre eles não se desenvolva com naturalidade. E se o Alpha 5 dublado por Bill Hader causa algumas risadas, Bryan Cranston é desperdiçado como Zordon, que aqui fica longe de ser um personagem digno do talento do ator. Já Elizabeth Banks se diverte no papel de Rita Repulsa, compondo-a como uma figura um tanto bizarra, mas ainda assim trata-se de uma vilã que nunca deixa de parecer subdesenvolvida.


Somando a tudo isso referências que devem fazer fãs da série de TV sorrirem (“É hora de morfar!”, “Faça meu monstro crescer!”) e outras que soam totalmente deslocadas (a música-tema que toca em determinado momento), Power Rangers até funciona melhor que os dois filmes lançados na década de 1990. Uma pena, porém, que ele não consiga superar seus pontos fracos, que o impedem de se estabelecer como um entretenimento realmente eficiente.

Obs.: Há uma cena durante os créditos finais.

Nota:

quarta-feira, 22 de março de 2017

Fragmentado

Logo no início da carreira, quando fez filmes como O Sexto Sentido e Corpo Fechado, M. Night Shyamalan foi visto por muitos como “o novo Hitchcock”, o que hoje não é levado nada a sério considerando a queda vertiginosa do diretor de lá pra cá. Mas tendo esse título infundado em vista, talvez possamos dizer que Shyamalan tenta fazer neste Fragmentado o seu Psicose, criando um thriller ao redor de um homem que sofre de um caso de transtorno de múltiplas personalidades. É uma pena, porém, que o longa se revele irregular como a maior parte das obras do diretor, mesmo não sendo um desastre como A Dama na Água e Fim dos Tempos.

Escrito pelo próprio Shyamalan, Fragmentado não perde tempo para colocar sua trama nos trilhos, logo começando com Dennis (James McAvoy) sequestrando as jovens Casey (Anya Taylor-Joy), Claire (Haley Lu Richardson) e Marcia (Jessica Sula), levando-as até seu cativeiro. Só que Dennis representa apenas uma das 23 personalidades (isso mesmo, 23!) de Kevin, cujo caso é tratado e analisado pela Dra. Karen Fletcher (Betty Buckley). E uma nova personalidade pode estar emergindo, de forma que passamos a acompanhar como que todas elas lidam com isso em meio à situação na qual se meteram, enquanto que o trio sequestrado não mede esforços para encontrar uma forma de fugir.

É uma premissa curiosa, para dizer o mínimo. Exatamente por isso o filme não encontra muita dificuldade para deixar o espectador intrigado logo de cara quanto ao desenrolar de sua trama. E além de criar uma ou outra cena mais inquietante por conta da imprevisibilidade do vilão (como quando Patricia, uma das principais identidades dele, faz sanduíches para as garotas), Shyamalan brinca com a natureza do personagem de um jeito até surpreendente, como no momento em que uma personalidade se passa por outra ou quando elas conversam entre si. Aliás, é até interessante ver o diretor trabalhar com a possibilidade de essas figuras dentro de Kevin seguirem diferentes ideais, podendo ter visões diferentes com relação ao que o corpo que as une acaba fazendo.


Mas ainda assim Shyamalan vai perdendo o espectador gradativamente, graças não só a narrativa capenga que constrói, mas também a direção que resolve dar para a história. Aqui, o diretor tem um roteiro que apela demais para diálogos expositivos muito óbvios para estabelecer o histórico dos personagens e pontos importantes da trama, dando atenção também a flashbacks pontuais envolvendo a infância de Casey, que surgem quase sempre de modo intrusivo, quebrando o ritmo do filme e ajudando a formar uma estrutura narrativa frágil. Mas o que sabota de vez Fragmentado é o fato de, a partir de determinado momento, Shyamalan passar a encarar o transtorno de seu vilão de maneira absurda, chegando ao ponto de transformar o que vemos em um filme de monstro, o que incomoda principalmente porque o diretor-roteirista tenta dar explicações racionais nada convincentes para o que acontece com o personagem. Nem mesmo a grande reviravolta da história, que surge em sua última cena e mostra com que tipo de universo ele está lidando, consegue justificar isso (de qualquer forma, a ideia presente nessa cena específica é promissora, e só não entro em maiores detalhes para não estragar possíveis surpresas).


Encarando um desafio que deve ser empolgante para qualquer ator, James McAvoy se sai bem na maior parte do tempo ao encarnar as várias personalidades de Kevin, conseguindo diferencia-las eficientemente com os maneirismos que utiliza e por vezes até divertindo, mesmo não tendo muitas oportunidades para pular de uma identidade para a outra com naturalidade, já que quase o tempo todo ele se vê trocando de roupa para mostrar qual delas está interpretando. Mas nem isso compensa os caminhos esdrúxulos pelos quais o filme anda no terceiro ato. Enquanto isso, a expressiva Anya Taylor-Joy (a grande revelação do ótimo A Bruxa) tem em Casey uma jovem que é vista pelo filme de maneira diferenciada comparada às colegas dela (uma dupla para a qual não damos a mínima), se estabelecendo rapidamente como àquela com a qual nos identificamos e que deverá fazer frente ao vilão, sendo decepcionante que a força que ela mostra não tenha tanta importância na resolução do conflito entre eles. Já Betty Buckley faz o que pode com sua Dra. Fletcher, criando uma figura simpática, mesmo surgindo subdesenvolvida e servindo mais para explicar para o público o transtorno de Kevin e as ideias que Shyamalan tem em cima disso.

Em seu trabalho anterior, o eficiente A Visita, Shyamalan parecia estar ensaiando um retorno à boa forma que mostrou no início da carreira. Até por isso é frustrante não poder afirmar que Fragmentado é um novo longa de destaque do cineasta. Talvez isso tenha ficado para sua próxima empreitada. Ou estou sendo muito otimista?

Nota:

domingo, 19 de março de 2017

Séries: Punho de Ferro

Apesar de terem fragilidades (principalmente quando falamos da segunda temporada de Demolidor e da primeira de Luke Cage), as séries da Marvel lançadas pela Netflix tem se revelado bem satisfatórias, criando um universo diferente do que se vê nos filmes e envolvendo o público com seus personagens e sua densidade. Isso, porém, sofre uma escorregada em Punho de Ferro, a mais nova série do estúdio e que apresenta o último herói que integrará Os Defensores, minissérie que reunirá os protagonistas da Marvel/Netflix da mesma forma que os filmes dos Vingadores fazem no cinema. Aqui infelizmente temos uma produção repleta de problemas (alguns deles até comuns nessas séries) e que não traz elementos interessantes o suficiente para compensar isso.

Desenvolvida por Scott Buck, cujos trabalhos anteriores como showrunner foram as péssimas temporadas finais de Dexter, Punho de Ferro nos apresenta a Danny Rand (Finn Jones), rapaz que retorna a Nova York quinze anos depois de ser dado como morto em um acidente aéreo que matou seus pais. Nesse período, ele foi criado por monges na mística cidade de K’un-Lun, tonando-se um mestre nas artes marciais e detentor do poder do Punho de Ferro, que o possibilita canalizar energia em um de seus punhos. Mas o retorno para casa não se revela tão tranquilo, com Danny precisando provar sua identidade a fim de retomar o que puder de sua vida e da antiga empresa de seu pai, agora liderada por seus velhos amigos Joy e Ward Meachum (Jessica Stroup e Tom Pelphrey), além de se ver tendo que enfrentar a ameaça do Tentáculo, organização que já deu dor de cabeça para o Demolidor.


Ainda que a temporada se resuma a esses pontos, ela leva um bom tempo para definir o caminho que quer seguir. Não, isso não se deve por conta de uma calma na hora de desenvolver a trama, mas sim porque os roteiros dos episódios em vários momentos parecem andar em círculos, enrolando as coisas por aparentemente não ter outra forma de preencher as treze horas da temporada. Como resultado, a série não consegue ter uma história consistente, exibindo também um ritmo muito irregular que dificulta o envolvimento do espectador. É algo que piora por os episódios ainda preferirem perder tempo com cenas totalmente descartáveis ou que pouco acrescentam à narrativa, como quando o herói e sua nova aliada, a professora de artes marciais Colleen Wing (Jessica Henswick), fazem uma espécie de disputa de habilidades ou ao se concentrar em uma subtrama de lutas clandestinas. Enquanto isso, o passado de Danny em K’un-Lun, elemento importante para estabelecer o personagem, é condensado em flashbacks superficiais e, principalmente, longos diálogos expositivos, sendo que este último é um recurso que os roteiristas usam e abusam ao longo da temporada.

Mais triste que esses problemas é ver que a série não consegue empolgar nem ao partir para a ação, algo surpreendente tendo em vista as habilidades dos personagens com artes marciais e como isso já havia rendido ótimos momentos em Demolidor. Com exceção de um confronto numa espécie de Escola Xavier Para Superdotados (só que para pessoas comuns) na reta final da temporada, as sequências de luta são conduzidas de maneira burocrática e sem qualquer energia, além de não contarem com o peso dos confrontos vistos na série do Homem Sem Medo ou até em Jessica Jones e Luke Cage, ainda que nestas a ação ficasse um tanto limitada diante da superforça dos protagonistas. Aliás, ao longo dos episódios o poder de Danny Rand não é utilizado à exaustão, dando prioridade aos socos e pontapés, mas não deixa de ser decepcionante que os realizadores o acionem quase como um deus ex machina em boa parte do tempo, tirando obstáculos da frente do herói quando ele se encontra sem saída.


Mas talvez tudo isso fosse compensado se ao menos tivéssemos personagens cativantes que segurassem bem a narrativa, mas a verdade é que é difícil se importar com a maioria das figuras que aparecem na tela. Por mais que o roteiro estabeleça Danny Rand como um sujeito que luta pelo que é certo, no fim ele acaba tendo o azar de ter em Finn Jones um intérprete esforçado, mas pouco carismático. O mesmo pode ser dito sobre Jessica Henwick no papel de Colleen Wing, sendo que a relação dela com Danny por vezes é desenvolvida de maneira boba e óbvia. Já Jessica Stroup e Tom Perphley surgem aborrecidos como os irmãos Joy e Ward Meachum, protagonizando alguns dos momentos mais enfadonhos da série, ao passo que David Wenham até tenta fazer com que o pai deles, Harold Meachum, soe imprevisível e ameaçador, mas o roteiro não colabora muito para isso. Vale dizer, porém, que as participações de figuras que já conhecíamos das outras séries funcionam melhor, desde Rosario Dawson como Claire Temple até Carrie Ann-Moss como a advogada Jeri Hogarth, passando por Wai Ching Ho como Madame Gao, que se destaca por ser uma vilã que sempre parece estar vários passos a frente de seus adversários.

Punho de Ferro até usa seu protagonista para fazer comentários relevantes sobre a desumanidade das grandes corporações, questionando a importância que elas dão aos próprios interesses (especialmente dinheiro) sem dar a mínima para quem sairá prejudicado por isso. Mas são pontos rápidos e que não chegam a ser prioridade em meio a uma temporada mal organizada, que se estabelece como uma das produções mais fracas do universo Marvel até agora. O que vemos aqui serve mais para que tenhamos alguma noção de quem é Danny Rand antes de ele se juntar a outros heróis, e resta torcer para que esta reunião em Os Defensores tenha uma força criativa maior.

Confira as críticas das outras séries da Marvel/Netflix:

quarta-feira, 8 de março de 2017

Kong: A Ilha da Caveira

Tendo impressionado o público quando surgiu nas telonas pela primeira vez em 1933 e se tornado desde então um dos monstros mais famosos do cinema, ao lado de Godzilla, King Kong já rendeu tantos filmes que é até natural ver realizadores apostando novamente no personagem. Sua história clássica com o clímax no topo do Empire State Building pode ter sido contada e recontada o suficiente (acredito que Peter Jackson fez a versão definitiva disso nas três horas do épico remake de 2005), mas isso não impede ninguém de tentar seguir outros rumos com o material, algo que este Kong: A Ilha da Caveira faz com sucesso, mergulhando no universo de King Kong através de uma narrativa que remete a Jurassic Park e Apocalypse Now. É um pacote que pode parecer inusitado à primeira vista, mas que entretém o espectador ao longo de toda a projeção.

Escrito por Dan Gilroy, Max Borenstein e Derek Connolly a partir do argumento de John Gatins, Kong: A Ilha da Caveira é situado em 1973, pouco depois da saída dos americanos da Guerra do Vietnã, e segue um grupo de soldados e exploradores que vai até a ilha que dá título ao filme com o objetivo de mapeá-la e estudar seus recursos naturais. Mas é claro que isso não sai como planejado depois que um gorila gigante surge no caminho deles, e se o animal passa a fazer de tudo para proteger seu território, os humanos fazem de tudo para sair vivos dali, sendo que o lugar ainda é lar de uma série de outras criaturas.

É como se o segundo ato do King Kong original e dos remakes, passagem majoritariamente situada na Ilha da Caveira, fosse expandido e ganhasse atenção quase exclusiva por parte dos roteiristas, que assim encontram uma boa maneira de explorar o lar de seu imponente monstro. Claro que em outros filmes já vimos que King Kong não é o único animal gigante a habitar o local, mas aqui o roteiro faz com que isso seja um dos pontos principais da história, trazendo uma galeria de criaturas que mostra o quão rico é o habitat da ilha, que fascina por não ver barreiras em seu absurdo, além de servir como uma ameaça interessante para os personagens humanos.

Com isso em mãos, o diretor Jordan Vogt-Roberts surpreende em sua primeira empreitada em superproduções (antes de assumir a cadeira de direção aqui, seu único trabalho no cinema havia sido o ótimo e modesto Os Reis do Verão). Exibindo talento na condução das cenas de ação, Vogt-Roberts cria confrontos grandiosos e empolgantes envolvendo King Kong e as diversas ameaças presentes na ilha (aliás, estes são brilhantemente concebidos pela equipe de efeitos visuais), conseguindo no processo manter o espectador sempre a par do que está acontecendo em cena. Além disso, o diretor prende a atenção do público com relação ao jogo pela sobrevivência no qual os humanos se encontram, criando um bom nível de tensão que só é aliviado pelas piadas que pintam na tela recorrentemente e que funcionam na maior parte do tempo. Nisso, destaco o raccord (corte que mantém a continuidade de um plano para outro) entre um soldado prestes a ser devorado por Kong e um sanduíche sendo mordido, certamente um dos momentos mais divertidos do filme e que define o curioso senso de humor da narrativa.

Enquanto isso, os personagens humanos são desenvolvidos o suficiente para que simpatizemos com eles, sendo que para isso o longa ainda tem a sorte de contar com nomes como Tom Hiddleston, Brie Larson e John Goodman, atores talentosos e que trazem alguma humanidade às figuras que interpretam, facilitando nossa identificação (por sinal, a homenagem a Joseph Conrad presente no nome do personagem de Hiddleston, James Conrad, é mais do que apropriada considerando os ecos de Apocalypse Now vistos no filme). Mas Samuel L. Jackson e John C. Reilly são os que se destacam um pouco mais no elenco, até por encarnarem personagens melhor concebidos pelo roteiro. Jackson cria em seu Preston Packard um homem cujo modo de agir vem muito de sua resistência em aceitar as derrotas recentes de seu país em guerras, o que apenas o faz querer provar de uma vez por todas a força americana, ao passo que Reilly praticamente rouba a cena com seu carismático e divertido Hank Marlow, causando boa parte das risadas proporcionadas pelo filme.

Inserindo ainda comentários certeiros sobre a política externa americana e sua rotina de invasões e guerras descartáveis (“O inimigo não existe até você procurar por ele”, diz alguém em determinado momento), Kong: A Ilha da Caveira se estabelece como um exemplar admirável da franquia de seu grande monstro cinematográfico. Um filme que já se coloca entre as boas surpresas desse ano e nos deixa curiosos quanto ao futuro do personagem.

Obs.: Há uma cena importante depois dos créditos finais.

Nota:

quarta-feira, 1 de março de 2017

Logan

A jornada de Wolverine pela franquia cinematográfica dos X-Men trazia um lado um tanto lamentável. Como membro do grupo de heróis, ele surgia em obras excepcionais, protagonizando aventuras empolgantes e tornando-se um dos melhores personagens por ali. No entanto, quando ele partia para aventuras solo, os resultados não seguiam o mesmo caminho, rendendo produções que não faziam jus ao seu potencial (X-Men Origens: Wolverine, em especial, foi um pequeno desastre). Em parte é por isso que é bacana poder dizer que Logan muda essa questão. Última aparição de Hugh Jackman como o personagem, este novo filme-solo se arrisca um pouco mais e revela-se extremamente rico na abordagem que dá a seu protagonista e ao universo que o cerca.

Escrito por Michael Green e pelo diretor James Mangold (retornando após o mediano Wolverine: Imortal) em parceria com Scott Frank, Logan traz o personagem-título tentando não chamar muita atenção e trabalhando como motorista de limusine no futuro de 2029, quando os mutantes estão quase erradicados. Ele se esforça para cuidar de seu velho amigo Charles Xavier (Patrick Stewart, também em sua última aparição no papel) com a ajuda de Caliban (Stephen Merchant), uma rotina que muda quando a pequena Laura (Dafne Keen) surge no caminho deles, colocando o perigoso grupo liderado por Donald Pierce (Boyd Holbrook) em seu encalço.

Desde o princípio, Logan joga o espectador em um universo de atmosfera desesperançosa, sendo que às vezes o filme lembra um pouco o excepcional Filhos da Esperança, até por incluir o fato de fazerem muitos anos desde o último nascimento de um mutante, assim como ocorria com os humanos daquele longa. É algo que ajuda a estabelecer o tom melancólico que rege boa parte da narrativa, com o roteiro mostrando ter como prioridade aproveitar seu contexto para trabalhar a humanidade de seus personagens, a relação que constroem uns com os outros e seus dramas pessoais. Assim, vale dizer que aqui encontramos um Logan e um Charles Xavier completamente diferentes das versões joviais e altruístas que acompanhamos até pouco tempo atrás, com ambos exibindo um misto de cansaço, raiva e tristeza que sinaliza perfeitamente as tragédias que os levaram a sua atual situação.

Tudo isso é tratado com cuidado e sensibilidade por James Mangold, que consegue dar densidade àquelas figuras e à narrativa que constrói, e não é à toa que alguns dos melhores momentos do filme são exatamente aqueles mais intimistas nos quais vemos Logan, Xavier e Laura discutindo uns com os outros ou simplesmente encontrando uma espécie de paz em meio à realidade que vivem. Isso não quer dizer, porém, que o longa se perca ao partir para a ação. Seguindo o caminho de Deadpool ao se livrar das amarras que uma baixa classificação indicativa certamente lhe daria, Logan investe na violência como raramente se vê em filmes de super-heróis, detalhe que jamais soa gratuito, dando peso aos atos dos personagens e intensidade às sequências de ação. Estas, por sinal, são conduzidas com uma segurança admirável por Mangold, que também é hábil ao criar tensão a partir dos surtos telepáticos que Xavier tem pontualmente, e o fato de nos importamos com aquelas figuras e seus destinos naturalmente faz com que a ação seja envolvente e instigante.

Enquanto isso, Hugh Jackman ganha um prato cheio para explorar Logan dramaticamente, sendo bom ver o ator exibir a mesma determinação que sempre teve no papel, por mais que este seja um personagem que ele poderia interpretar com os olhos vendados e as mãos atadas. Logan surge como um homem que tenta evitar abraçar tanto seu lado violento quanto o herói que foi um dia, mostrando-se física e emocionalmente mais vulnerável que nos outros filmes, algo que Jackman pontua brilhantemente, encarnando um arco de redenção surpreendente e até mesmo tocante. Por sinal, tal vulnerabilidade não deixa de ser compartilhada com o Charles Xavier de Patrick Stewart, que aqui é perseguido pela senilidade decorrente da idade e pela culpa com relação a um evento recente, elemento que o torna uma espécie de herói trágico, e o monólogo que ele tem em determinado momento representa o ponto mais emocionante da projeção. E se a pequena Dafne Keene se destaca com uma presença em cena admirável no papel de Laura, tendo uma ótima dinâmica com os dois veteranos da franquia, Stephen Merchant faz de Caliban não um alivio cômico como talvez pudéssemos esperar dele, ganhando espaço para dar peso dramático a um aliado importante para o protagonista, ao passo que Boyd Holbrook cria em Donald Pierce um vilão interessante o suficiente para tornar palpável a ameaça do grupo governamental que ele representa.

Logan acaba sendo uma despedida mais do que digna de um excelente ator ao personagem que lançou sua carreira rumo ao estrelato absoluto. Contando sua história com maturidade e evitando caminhos fáceis, este é um filme de super-herói que fascina e comove como poucos do subgênero conseguem.

Nota: